quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

A aluna Jurema conversa com Rose sobre o conto O Amor, de Lispector


PESSOAL, AS QUESTÕES APARECERÃO ABAIXO DA PEQUENA NARRATIVA COM UMA ALUNA.


NARRATIVA DA MINHA AULA

Uns alunos não gostaram do conto O AMOR, de Lispector.

- O que viveu Ana, afinal?  – quer saber Jurema.

- Ela pôde ter contato consigo, no que a vida tem de plenitude.

- Acho que o marido dela é um chato que a reprimia!

- Não, Jurema. Nada a ver com o marido ou filhos.
Ana, como todos nós, teme a vida, no que a vida tem de selvageria, de miséria, de força arrebatadora. Já viu o nascimento de filhotes de barata? Assusta não é?
Ana, na juventude, teria sido plena, uma garota cheia de vida e curiosidade, acho que é isso. Se sentisse alegria, era alegria exagerada, poderosa. Se tristeza, muita tristeza. Jurema, lembra-se de quando era bebê? As cores eram vivas e você batia palminhas sem vergonha do que fossem lhe dizer, ou do que fossem achar de você. Sentia alegria ao ver um gato, um filhote de coelho. E se lambuzava de chantili sem medo de ficar com a boca suja.

- Mas por que somos reprimidos, Rose?

- A sociedade nos molda, vamos para a escola, aprendemos a andar em fila, a nos comportar. Ser exageradamente feliz, ficar pulando e dando tapas alegres na turma da fila do banco? Ninguém faz isso, ainda que  possa ter vontade, digo, num dia contente. Mas nem todo mundo se molda a essa inibição. Há quem chegue à juventude inteiro, rebelde, sentindo com força tudo que a vida tem de horror.

- Por que diz horror, Rose? A vida é bela.

- Nada! Há momentos belos, a maioria, no entanto, é cruel, sinto dizer, é o que penso. Pense no mendigo deitado na calçada, sujo, com mau cheiro. Você passa e sequer olha pra ele. Por quê? Fica aflita. Ou sente pena e nada poderá fazer. Tem de ir para o cursinho. Não pode parar e às vezes fica revoltada mas controla-se porque precisa seguir.
Quando se controla perde um pouco de si, do que você é.
Quando Ana se casa foge de sua grande percepção da vida, começa a organizar tudo, as latas com os biscoitos guardados, a costura, o fogão com as panelas coloridas e os cabos todos para o lado direito. Ela molda um mundo organizado. Talvez por medo de sofrer. Ou de perder o controle sobre si e sobre a sua imensa liberdade.
***
Jurema fica furiosa.

- Rose, se deixarmos tudo bagunçado não nos entenderemos. Minha mãe me dá bronca quando deixo o quarto desarrumado.

- Sim, Jurema, ocorre que uma coisa é arrumar o quarto outra é pegar essa organização e querê-la como controle da vida. E tudo pode acontecer. Terremotos, chuvas que levam casa. E tudo é a terra e o descampado. Os homens criaram asfalto e casas, mas um terremoto acaba com tudo, uma crise econômica também. A pessoa sem dinheiro vive a fome que é o flagelo maior dos bichos. Somos bichos.
Ana teria sido uma jovem inteira, não precisava beber cerveja ( acho que não) para se soltar, era plena e verdadeira. Sentiria piedade por todos que sofrem. Mas viver assim, percebendo tudo e, principalmente, percebendo sua liberdade, é difícil. Muitos buscam cursar faculdade e incorporam uma espécie de papel, o de juiz, advogado, médico e se 'seguram' numa espécie de papel. Nele pensam que tudo está controlado. Nada na vida vai sair do controle. E acreditam que esse mundo ordeiro as salva do a vida representa de instável, perigoso ou até alegre demais.

- Ana então se moldou a uma vida segura? Mas era feliz?

- Ela tentava, Jurema. Mas quando chegava a tarde e os filhos estavam no colégio... vinha um medão. Ela tentava crer que ser casada, ter filhos e ter de cuidar deles era o fim da vida. E por isso não precisaria questionar ou sentir mais nada ou quase nada. Mas como – eu já disse-  tinha força para sentir grandes paixões, tanto as boas quanto as ruins, às vezes ficava temerosa.

- E o cego mascando chicletes provocou nela o quê?

- Ela sentiu tudo na hora em que bateu os olhos no olho dele: sentiu piedade e ao mesmo tempo uma espécie de horror. Como uma pessoa cega pode ter uma boca tão boa de mascar chiclete? Como pode ‘curtir’ chiclete? E sentiu piedade dele.

- Isso desconstruiu as certezas dela?

- Exato. Perceba que o mundo dela tinha fragilidade. Todos os mundos inventados são frágeis. Muitas vezes nossos pais, tentando nos proteger dos horrores da vida buscam esconder de nós as verdades mais cruas, não falam desses horrores... E somos protegidos . Há jovens que ficam tão reprimidos que nem sabem bem o que sentem. Uns até partem para as drogas para voltar a ter contato com a vida que é muita dor mas é alegria também. Entendeu o conto?

- E o que é epifania?

- É só um nome de liturgia, de religião, os santos tinham momentos em que, inspirados, percebiam a grandeza da fé, de Deus. Mas isso não há no conto. O que Ana percebe é a grandeza dela mesma e da vida.
Jurema, mas ela foge aterrorizada, entra no Jardim Botânico buscando um lugar de trégua, sombra, árvores e água corrente. Ocorre que a beleza extrema do jardim também a espanta, ainda que a acalme um pouco. Ela vê a força da vida nas formigas, larvas. 
Há metáforas incríveis nessa parte do Jardim Botânico. Vou colocar algumas num pequeno exercício.

- Então faça os exercícios.

-  Sim, farei tudo. Mas perceba, Jurema, que, quando ela volta para casa ainda está assustada consigo e teme até que ela ( teme a si mesma!) mesma abandone seu filho. Para  pular no mundão, grande demais para confiná-la apenas ao papel de mãe.

- Mas por fim ela volta ao seu cotidiano normal?

- Parece que sim. O maridão  percebe que algo ocorreu com a mulher e puxa-a para o quarto. Ela então apaga a pequena chama do dia. Perceba que é pequena a tal chama. Entendo que ela controlou o estado de êxtase que viveu depois de ver a boca do cego com o chiclete. Creio que ela conseguiu se controlar.

- Isso foi mal?

- Depende do que ela queria da vida. Plenitude de saber que se pode ser mais do que se é? Certeza de que viver a escolha que a liberdade impõe? 
Não podemos saber pois o conto termina.

- Obrigada, Rose.


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ANÁLISE DE TRECHOS DO CONTO


1  Leia o trecho e explico como Ana entenderia o que significa ser adulto.

 Ana aceita que se viva sem felicidade mas depois de abolir tal felicidade descobre pessoas que vivem com alegria. Qual é a diferença entre alegria e felicidade no entendimento de Ana?

'Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia'': abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria''


continuo depois da chuva

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.





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